(Artigo escrito em julho de 2012)
O
presente trabalho discorre sobre o processo de elaboração e criação
do vídeo, Je veux voir
le cirque de puces (Duração: 3:37) ,
a partir das proposições do componente curricular, Elementos da
Linguagem Visual. Disciplina comum aos cursos de Dança e Teatro da
Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), ministrada pelo
Professor Mestre Igor Simões, do curso de Artes Visuais. A proposta
era que, partindo da escolha de um texto dramático ou fragmento
coreográfico, fizéssemos a associação de pontos, linhas, formas
geométricas, cores e objetos que englobassem estes elementos na
construção de um significado.
Relacionando
tais escolhas ao texto Sintaxe da Linguagem Visual, e
posteriormente criando um espaço cênico que dialogasse com todas as
informações obtidas durante o processo de criação/reflexão,
contextualizando-os na atual escrita. Devo ressaltar que este, é na
realidade, o segundo texto que escrevo, por ter percebido que estava
fazendo paralelamente dois trabalhos para a mesma proposta. O
primeiro deles se referia a um fragmento da peça de Tenesse
Williams, Um Bonde Chamado Desejo. E foi para ele que
relacionei meus primeiros passos, linhas e afins. Optando, ao
perceber que teria de fazê-lo, pelo processo com o circo de pulgas.
A
ideia do Circo de Pulgas surgiu no dia vinte e três de março
durante o Seminário A Encenação Contemporânea, com a
pesquisadora e professora francesa, Dra. Béatrice Picon- Vallin, em
Porto Alegre, na sala Álvaro Moreyra. Não sabendo, eu, dizer ao
certo, se ao longo da conferência Reexaminando o Papel do
Encenador Hoje, ou se após a mesma. Re- visitando minhas
memórias em relação a esta noite, lembro, de que a musicalidade da
fala “à francesa”, me provocara durante toda a conferência. E
que de lá voltei, imaginando como seria pronunciar Eu quero ver o
circo de pulgas em francês, (semanas antes, eu assistira a um
documentário sobre insetos, descobrindo que estes circos de fato
existiam).
A
partir daquele momento, as imagens dos atores e a visão de uma
mulher que constantemente pedia para ver o circo, não saia da minha
cabeça. Auxiliada pelo Google Tradutor, descobri tanto a escrita
quanto a pronúncia da frase “Eu Quero ver o Circo de Pulgas”,
fui então, em busca, de materiais que permitissem ampliar meu
conhecimento à respeito do assunto. Cheguei até o texto contido em
uma página na Internet, referente à revista Super Interessante, que
me deu subsídios para a condução e contextualização dos caminhos
de criação. O mesmo dizia:
A
arquiteta Maria Fernanda Cardoso decidiu abandonar as pranchetas e
amestrar pulgas. Ela é dona do circo de pulgas Cardoso, sediado em
San Francisco, nos Estados Unidos. No século XIX, este tipo de circo
fazia sucesso nas feiras das pequenas vilas. Hoje, ainda há registro
de quatro deles.
Das
1600 espécies de pulgas, duas, que medem cerca de três milímetros,
são as preferidas por serem as mais comuns: a pulga de gato
(Ctenocephalides felis) e a que ataca o homem (Pulex irritans). “Eu
levo cerca de três meses para adestrar o inseto, que vive dois
anos”, diz Adan Gertsacov, proprietário do circo Acme, também nos
Estados Unidos. Mas, a palavra adestrar talvez não seja correta.
“Uma pulga não é capaz de aprender como um cachorro”, diz o
entomologista Carlos Campaner, da Universidade de São Paulo. “Seu
sistema nervoso é pouco desenvolvido.” O que se faz é aproveitar
os movimentos naturais do inseto. Mas isso pouco importa para quem
está assistindo, seja na tela de televisão ou com uma lupa. As
imagens são tão surpreendentes e incomuns que o show está
garantido.
A
partir do texto acima e também dos demais detalhes descritos ao
longo do mesmo, refleti sobre a possibilidade de escolher atores que
assim como as pulgas, estariam a serviço de algo que desconheciam.
Fazendo parte de um processo no qual suas habilidades naturais seriam
utilizadas para a criação do universo circense. Este criado como um
espaço vazio, ou “um não lugar”, de onde as pulgas poderiam ser
observadas pelo filtro da tela.
Utilizando
as associações de pontos, linhas e formas geométricas referentes
ao trabalho anterior, no qual cheguei tanto ao círculo, quanto a
dois triângulos retângulos, criei um universo de associações
entre as formas. Justificando a escolha dos objetos como: Cone de
cartolina (lugar por onde se espia) e copo (triângulo+ círculo);
Cilindro vazado (lugar por onde se espia) e cartola (círculo+ os
dois triângulos unidos que resultariam em um retângulo= forma e
altura da cartola); Mesa (associação dos triângulos). Quanto às
formas há uma importante citação no texto Sintaxe da Linguagem
Visual que corrobora com a reflexão proposta:
A
direção diagonal tem referência direta com a ideia de
estabilidade. É a formulação oposta, a força direcional mais
instável, e, consequentemente, mais provocadora das formulações
visuais. Seu significado é ameaçador e quase literalmente
perturbador. As forças direcionais curvas têm significados
associados à abrangência, à repetição e à calidez. Todas as
forças direcionais são de grande importância para a intenção
compositiva voltada para um efeito e um significado definidos.
(DONDIS, 1991, p.60)
A
associação de triângulo e círculo neste sentido foi perfeita,
considerando que as formas curvas, combinadas às diagonais
(triângulos) fundiam repetição e instabilidade, elementos que
estariam presentes como texto visual. Permeando tanto a dramaturgia
do universo das pulgas, como da mulher que as observava. E neste
sentido é interessante ressaltar que a forma circular influiu
diretamente na criação desta dramaturgia, visto que o curta começa
com o olho (associação entre círculos e triângulos) da
encantadora das pulgas e termina com um olhar outro, sobre a mulher.
Dando a ideia de que ao mesmo tempo em que ela observava o circo de
pulgas, era também ela, a pulga no circo de alguém. Para melhor
compreensão da relação entre dramaturgia e visualidade recorro aos
Fundamentos
Sintáticos do Alfabetismo Visual:
Na
criação de mensagens visuais, o significado não se encontra apenas
nos efeitos cumulativos da disposição dos elementos básicos, mas
também no mecanismo perceptivo universalmente compartilhado pelo
organismo humano. Colocando em termos mais simples: criamos um design
a partir de inúmeras cores e formas, texturas, tons e proporções
relativas; relacionamos interativamente estes elementos; temos em
vista um significado. O resultado é a composição, a intenção do
artista, do fotógrafo ou do designer. É seu input.
Ver é outro passo distinto da comunicação visual. É o processo de
absorver a informação no interior do sistema nervoso através dos
olhos, do sentido da visão. Esse processo e essa capacidade são
compartilhados por todas as pessoas, em maior ou menor grau, tendo
sua importância medida em termos do significado compartilhado. Os
dois passos distintos, ver e criar e/ ou fazer são interdependentes,
tanto para o significado em sentido geral quanto para a mensagem, no
caso de se tentar responder a uma comunicação específica. (DONDIS,
1991, p. 31)
Para
a criação da ilusão do universo das pulgas também fiz uso do
recurso da dimensão e escala (perspectiva), filmando os atores de
costas, a uma certa distância e aproximando à lente da câmera, um
copo, dando a ideia de que as pulgas estavam dentro do mesmo (muito
maior que os atores por estar próximo a câmera), que era retirado
aos poucos. O elenco, porém, em nenhum momento tomou conhecimento de
que enquanto estavam de costas, este processo era realizado. Ao
virarem-se de frente e executarem os movimentos orientados, o copo já
havia sido ocultado, impedindo que desconfiassem de que eram as
pulgas de um processo, do qual nada sabiam.
Sua
disposição no espaço, bem como suas ações e movimentos também
remeteram ao círculo e à linhas diagonais triangulares. Como a cor
escolhida foi o preto, as cenas foram gravadas tanto na sala
cinquenta e um (sala das aulas de Teatro, que possui paredes, teto,
cortina e linóleo preto), quanto em um corredor da Fundarte
(fundação Municipal das Artes de Montenegro, prédio sede da
Uergs). Este possui, uma parede cinza chumbo, acarpetada, facilmente
modificada com os efeitos de saturação da cor, e o Black Restore,
que confere um determinado formigamento ou textura às imagens (em
escalas de cinza), sempre associado ao “mundo das pulgas”.
As
imagens das pulgas foram feitos em dois momentos distintos, o
primeiro com a pulga (que embaralhava os copos, que continham outras
pulgas), a atriz Windy Branco (3º semestre- Teatro), realizado em
pelo menos trinta minutos. Depois com os atores Gustavo Diestman,
Daniel Barcellos, Raquel Zepka, Janaína Lima, Thaís Backes e João
de Carli, (1º semestre- Teatro), aproximadamente em quinze minutos
antes da aula da professora Jezebel De Carli. Os atores foram
orientados a utilizar roupas de trabalho (camisetas e calças pretas)
e a única informação, para justificar os movimentos que deles
seriam pedidos, era o de que eu estava trabalhando a partir de formas
geométricas.
O
objetivo da neutralidade dos figurinos, era atribuir-lhes a
significação comum de pulgas. O traje da encantadora dos insetos
também era preto, embora estilizado. Um terno com decote em corte
triangular, a destacava e a colocava numa condição diferente das
demais, só no fim, ao se descobrir observada é que a associação
do seu “eu” pulga também se torna mais possível. É
interessante ressaltar que as imagens do universo da observadora eram
mais orgânicas, com imagens apenas saturadas, enquanto as imagens
dos atores- pulgas sempre recebiam o tratamento Black Restore. Estes
efeitos, porém, começam a se fundir ao longo do curta, como código
visual, de que ela também estava sendo observada. A imagem final,
(na qual o cilindro branco de papel ofício vazado, é utilizado para
espiá-la), recebe o efeito TV, de tonalidade azulada e textura
visual mais aveludada ou “chuviscada”.
As
duas filmagens, bem como os vídeos de filmagem da encantadora de
pulgas e imagens do olho, foram realizados em momentos diferentes,
sem que nenhuma das pulgas tomasse conhecimento da existência dos
processos de gravações paralelas aos seus. O áudio também foi
gravado separadamente, e sincronizado ou não de acordo com o
objetivo da cena. Jonathas Pozo, responsável pela edição e
montagem dos vídeos, uma pulga, “digamos assim”, consciente de
sua condição, utilizou o programa Sony Vegas. Todo processo de
gravação, roteirização, edição e montagem do vídeo foi
dirigido por mim.
Mas,
um dos aspectos interessantes é refletir sobre a autoria do mesmo.
Autoria questionada de alguma forma, no dia do nascimento desta
ideia, no qual Béatrice Picon- Vallin refletia sobre qual é o papel
do encenador na cena contemporânea (qual é sua autoria em um
processo no qual todos co-criam)? Embora, eu tenha o conceito e
imagens pré- definidas, inclusive, algumas, desenhadas para orientar
a cinegrafista Stephanny Dilenburg. É indiscutível, que no momento
em que outro olho está por trás ou diante da lente, responsável
pela edição, captação de imagens, atuação (por mais pré-
expressiva que seja, como no caso das pulgas), esta autoria se
divide.
São
diferentes olhares (pulgas- atores, pulgas-cinegrafistas, pulga-
editor), a serviço de um único olho (pulga- observadora- diretora),
que passa a estar à mercê de diferentes olhares novamente
(pulgas-espectadores). Voltamos então à imagem do círculo, ou aos
triângulos dentro deste círculo e da forma como se relacionam num
(des) equilíbrio próprio e silencioso.
Em
uma de nossas reflexões, anteriores a realização da presente
atividade, fiquei responsável por trazer uma imagem que estivesse em
equilíbrio visual. Trouxe então, uma das imagens iniciais do filme
“A Montanha Sagrada” de Alejándro Jodorowsky, (que infelizmente
ainda não tive acesso, para assistir na íntegra). Nela também
havia a configuração de um triângulo e um observador silencioso no
centro. Acredito que mesmo inconscientemente, esta imagem tenha
influenciado nas minhas escolhas para a criação do curta.
Pesquisando para a atual escrita, achei uma descrição do filme que
(salvo suas particularidades) me pareceu surpreendentemente próxima,
a transcrevo abaixo:
Em
A Montanha Sagrada um Cristo latino- americano contemporâneo
caminha pelo centro histórico da Cidade do México com seu
companheiro anão. Os dois andarilhos por um momento interrompem a
caminhada para assistir ao “Grande Circo da Conquista do México”,
interpretado por sapos e camaleões. (SESC, 2009, s/p.)
Embora,
na breve passagem do circo de Jodorowsky, os camaleões astecas sejam
massacrados pelos sapos espanhóis e haja aí toda uma reflexão
política e religiosa, senti-me muito feliz com esta, até certo
ponto, coincidência “circense”. O que me levou a questionar mais
profundamente as possibilidades de leitura do meu circo, em que
todos, (por mais que acreditem estar no controle), também são
pulgas de um processo. Seríamos na vida, pulgas do circo de alguém?
Existe alguma pulga no controle? Quem a observa? Quem é a pulga
autora deste texto? A pulga que o escreveu, as pulgas citadas, as
pulgas participantes... ou a pulga que o reescreve a partir de sua
leitura?
Referências:
DONDIS,
Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
SESC.
Mostra JODOROWSKY. In: Sonho, Magia e Desrazão, um diálogo
entre Glauber e Jodorowsky (Estevão Garcia). São Paulo: Ed.
SESC, 2009.
http://super.abril.com.br/mundo-animal/circo-pulgas-437127.shtml
acessado em 26 de maio de 2012.