Entre pedras e memórias.
Lis
Machado[1]
Carlota Ivanóvna chega a casa no
primeiro ato, com um belo casaco bordô e uma pequena mala. Basicamente, estas
coisas são as que ela possui!
Voltando
de Paris... Longe Paris...[2]
O casaco que a personagem usa pertence
à diretora da peça, Tatiana Cardoso. Logo no primeiro ensaio com ele, encontrei
uma pequena pedra em seu bolso, era amarelada, bonita, simples. Não parecia uma
pedra de grande valor, mas representava algo místico. Era uma pedra
desconhecida no bolso de Carlota, deixada ali por alguém que nem eu, nem ela
conhecíamos. Optei por não retira-la dali, mas também não fiz grandes alardes
quanto a sua existência. Seguimos convivendo... Carlota, eu e a pedra!
Cada vez em que me preparava para
entrar em cena no primeiro ato, eu já sabia... Minha mão, involuntariamente...
sem consultar meu braço, cotovelo ou ombro, escorregaria até o compartimento
secreto e seguraria a dita cuja. Foram mais de dois anos de convivência, até
que...
Comentei
em um ensaio com minha diretora, de que havia uma pedra no bolso do casaco e
que a qualquer hora, eu acabaria escrevendo sobre sua existência. Alguns
ensaios depois, quando voltei a vestir o agasalho, minha mão saudosa de seus
habituais flertes mágicos com a nossa acompanhante misteriosa, deslizou até o
bolso, lá encontrando apenas o vazio de um forro qualquer. Assim como surgiu, a
pedra evaporou. Não há outra explicação...[3]
Carlota e eu temos muito em comum, desconhecemos
conscientemente nossas origens, mas as sentimos (in) consciente e profundamente.
Eu
não tenho passaporte em ordem, não sei que idade tenho. Me sinto sempre uma
mocinha (...) Um dia, quando papai e mamãe morreram uma senhora alemã me pegou
e me educou. Eu cresci e virei governanta, mas quem eu sou e de onde eu vim,
não sei, nem quem foram meus pais, casados não deviam ser, sei lá...[4]
Não sei muito sobre meu pai, ele
morreu quando eu tinha apenas sete meses. No entanto, sei que era casado com
minha mãe, que ainda vive e envelhece mais e mais, todos os dias. A cada nova
linha no rosto de minha mãe, menos eu a reconheço, não pelas modificações de
sua pele, mas pela constatação, de que ainda não sei quem ela é e de que não
tenho tempo para tentar descobrir. Entre uma visita e outra, novas linhas
aparecem... no rosto dela e também no meu.
Agora voltemos a meu pai, que já se
foi como o de Carlota.
Ele partiu, mas, deixou-me memórias
emprestadas, cultivadas por sua mulher, regadas por algumas histórias, alguns
objetos – de origem artística ou mística – que encontro, guardo, cultuo e
cultivo.
Um destes objetos é uma pedra:
Ela que era
minha
Também era de
meu pai
Usada em seus
rituais místicos
Um pai mágico
para uma atriz que faz uma personagem mágica
Ela que era
mágica
Também era do
pai dela
Ela que era
uma personagem de Tchéckov
Era agora
minha
Para criar,
compor, dar vida
Dar-lhe vida
dar-lhe a pedra
Agora você porta a
pedra certa:
Bravo,
Carlota Ivanóvna!
[1] Atriz pesquisadora do
espetáculo O Jardim das Cerejeiras, do dramaturgo russo Anton Tchéckov, dirigida e orientada pela professora Tatiana Cardoso.
[2]
Fragmentos de texto do
personagem Firs em O Jardim das
Cerejeiras.
[3] No ensaio em questão, Tatiana
falou-me que a pedra talvez fosse de seu filho, Teodoro.
[4] Fragmentos de texto da
personagem Carlota Ivanóvna em O Jardim
das Cerejeiras.
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