sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Texto criado para o processo de pesquisa pessoal em "O Jardim das Cerejeiras"


Entre pedras e memórias.
                                                                                              Lis Machado[1]

Carlota Ivanóvna chega a casa no primeiro ato, com um belo casaco bordô e uma pequena mala. Basicamente, estas coisas são as que ela possui!

Voltando de Paris... Longe Paris...[2]

O casaco que a personagem usa pertence à diretora da peça, Tatiana Cardoso. Logo no primeiro ensaio com ele, encontrei uma pequena pedra em seu bolso, era amarelada, bonita, simples. Não parecia uma pedra de grande valor, mas representava algo místico. Era uma pedra desconhecida no bolso de Carlota, deixada ali por alguém que nem eu, nem ela conhecíamos. Optei por não retira-la dali, mas também não fiz grandes alardes quanto a sua existência. Seguimos convivendo... Carlota, eu e a pedra!
Cada vez em que me preparava para entrar em cena no primeiro ato, eu já sabia... Minha mão, involuntariamente... sem consultar meu braço, cotovelo ou ombro, escorregaria até o compartimento secreto e seguraria a dita cuja. Foram mais de dois anos de convivência, até que...

Comentei em um ensaio com minha diretora, de que havia uma pedra no bolso do casaco e que a qualquer hora, eu acabaria escrevendo sobre sua existência. Alguns ensaios depois, quando voltei a vestir o agasalho, minha mão saudosa de seus habituais flertes mágicos com a nossa acompanhante misteriosa, deslizou até o bolso, lá encontrando apenas o vazio de um forro qualquer. Assim como surgiu, a pedra evaporou. Não há outra explicação...[3]

Carlota e eu temos muito em comum, desconhecemos conscientemente nossas origens, mas as sentimos (in) consciente e profundamente.

Eu não tenho passaporte em ordem, não sei que idade tenho. Me sinto sempre uma mocinha (...) Um dia, quando papai e mamãe morreram uma senhora alemã me pegou e me educou. Eu cresci e virei governanta, mas quem eu sou e de onde eu vim, não sei, nem quem foram meus pais, casados não deviam ser, sei lá...[4]

Não sei muito sobre meu pai, ele morreu quando eu tinha apenas sete meses. No entanto, sei que era casado com minha mãe, que ainda vive e envelhece mais e mais, todos os dias. A cada nova linha no rosto de minha mãe, menos eu a reconheço, não pelas modificações de sua pele, mas pela constatação, de que ainda não sei quem ela é e de que não tenho tempo para tentar descobrir. Entre uma visita e outra, novas linhas aparecem... no rosto dela e também no meu.

Agora voltemos a meu pai, que já se foi como o de Carlota.
Ele partiu, mas, deixou-me memórias emprestadas, cultivadas por sua mulher, regadas por algumas histórias, alguns objetos – de origem artística ou mística – que encontro, guardo, cultuo e cultivo.

Um destes objetos é uma pedra:

Ela que era minha
Também era de meu pai
Usada em seus rituais místicos
Um pai mágico para uma atriz que faz uma personagem mágica

Ela que era mágica
Também era do pai dela
Ela que era uma personagem de Tchéckov
Era agora minha
Para criar, compor, dar vida

Dar-lhe vida
           dar-lhe a pedra




Agora você porta a pedra certa:

Bravo, Carlota Ivanóvna!




[1] Atriz pesquisadora do espetáculo O Jardim das Cerejeiras, do dramaturgo russo Anton Tchéckov, dirigida e orientada pela professora Tatiana Cardoso.
[2] Fragmentos de texto do personagem Firs em O Jardim das Cerejeiras.
[3] No ensaio em questão, Tatiana falou-me que a pedra talvez fosse de seu filho, Teodoro.
[4] Fragmentos de texto da personagem Carlota Ivanóvna em O Jardim das Cerejeiras.

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