sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Je veux voir le cirque de puces (Eu quero ver o circo de pulgas).

(Artigo escrito em julho de 2012)



O presente trabalho discorre sobre o processo de elaboração e criação do vídeo, Je veux voir le cirque de puces (Duração: 3:37) , a partir das proposições do componente curricular, Elementos da Linguagem Visual. Disciplina comum aos cursos de Dança e Teatro da Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul), ministrada pelo Professor Mestre Igor Simões, do curso de Artes Visuais. A proposta era que, partindo da escolha de um texto dramático ou fragmento coreográfico, fizéssemos a associação de pontos, linhas, formas geométricas, cores e objetos que englobassem estes elementos na construção de um significado.
Relacionando tais escolhas ao texto Sintaxe da Linguagem Visual, e posteriormente criando um espaço cênico que dialogasse com todas as informações obtidas durante o processo de criação/reflexão, contextualizando-os na atual escrita. Devo ressaltar que este, é na realidade, o segundo texto que escrevo, por ter percebido que estava fazendo paralelamente dois trabalhos para a mesma proposta. O primeiro deles se referia a um fragmento da peça de Tenesse Williams, Um Bonde Chamado Desejo. E foi para ele que relacionei meus primeiros passos, linhas e afins. Optando, ao perceber que teria de fazê-lo, pelo processo com o circo de pulgas.
A ideia do Circo de Pulgas surgiu no dia vinte e três de março durante o Seminário A Encenação Contemporânea, com a pesquisadora e professora francesa, Dra. Béatrice Picon- Vallin, em Porto Alegre, na sala Álvaro Moreyra. Não sabendo, eu, dizer ao certo, se ao longo da conferência Reexaminando o Papel do Encenador Hoje, ou se após a mesma. Re- visitando minhas memórias em relação a esta noite, lembro, de que a musicalidade da fala “à francesa”, me provocara durante toda a conferência. E que de lá voltei, imaginando como seria pronunciar Eu quero ver o circo de pulgas em francês, (semanas antes, eu assistira a um documentário sobre insetos, descobrindo que estes circos de fato existiam).
A partir daquele momento, as imagens dos atores e a visão de uma mulher que constantemente pedia para ver o circo, não saia da minha cabeça. Auxiliada pelo Google Tradutor, descobri tanto a escrita quanto a pronúncia da frase “Eu Quero ver o Circo de Pulgas”, fui então, em busca, de materiais que permitissem ampliar meu conhecimento à respeito do assunto. Cheguei até o texto contido em uma página na Internet, referente à revista Super Interessante, que me deu subsídios para a condução e contextualização dos caminhos de criação. O mesmo dizia:

A arquiteta Maria Fernanda Cardoso decidiu abandonar as pranchetas e amestrar pulgas. Ela é dona do circo de pulgas Cardoso, sediado em San Francisco, nos Estados Unidos. No século XIX, este tipo de circo fazia sucesso nas feiras das pequenas vilas. Hoje, ainda há registro de quatro deles.
Das 1600 espécies de pulgas, duas, que medem cerca de três milímetros, são as preferidas por serem as mais comuns: a pulga de gato (Ctenocephalides felis) e a que ataca o homem (Pulex irritans). “Eu levo cerca de três meses para adestrar o inseto, que vive dois anos”, diz Adan Gertsacov, proprietário do circo Acme, também nos Estados Unidos. Mas, a palavra adestrar talvez não seja correta. “Uma pulga não é capaz de aprender como um cachorro”, diz o entomologista Carlos Campaner, da Universidade de São Paulo. “Seu sistema nervoso é pouco desenvolvido.” O que se faz é aproveitar os movimentos naturais do inseto. Mas isso pouco importa para quem está assistindo, seja na tela de televisão ou com uma lupa. As imagens são tão surpreendentes e incomuns que o show está garantido.


A partir do texto acima e também dos demais detalhes descritos ao longo do mesmo, refleti sobre a possibilidade de escolher atores que assim como as pulgas, estariam a serviço de algo que desconheciam. Fazendo parte de um processo no qual suas habilidades naturais seriam utilizadas para a criação do universo circense. Este criado como um espaço vazio, ou “um não lugar”, de onde as pulgas poderiam ser observadas pelo filtro da tela.
Utilizando as associações de pontos, linhas e formas geométricas referentes ao trabalho anterior, no qual cheguei tanto ao círculo, quanto a dois triângulos retângulos, criei um universo de associações entre as formas. Justificando a escolha dos objetos como: Cone de cartolina (lugar por onde se espia) e copo (triângulo+ círculo); Cilindro vazado (lugar por onde se espia) e cartola (círculo+ os dois triângulos unidos que resultariam em um retângulo= forma e altura da cartola); Mesa (associação dos triângulos). Quanto às formas há uma importante citação no texto Sintaxe da Linguagem Visual que corrobora com a reflexão proposta:

A direção diagonal tem referência direta com a ideia de estabilidade. É a formulação oposta, a força direcional mais instável, e, consequentemente, mais provocadora das formulações visuais. Seu significado é ameaçador e quase literalmente perturbador. As forças direcionais curvas têm significados associados à abrangência, à repetição e à calidez. Todas as forças direcionais são de grande importância para a intenção compositiva voltada para um efeito e um significado definidos. (DONDIS, 1991, p.60)

A associação de triângulo e círculo neste sentido foi perfeita, considerando que as formas curvas, combinadas às diagonais (triângulos) fundiam repetição e instabilidade, elementos que estariam presentes como texto visual. Permeando tanto a dramaturgia do universo das pulgas, como da mulher que as observava. E neste sentido é interessante ressaltar que a forma circular influiu diretamente na criação desta dramaturgia, visto que o curta começa com o olho (associação entre círculos e triângulos) da encantadora das pulgas e termina com um olhar outro, sobre a mulher. Dando a ideia de que ao mesmo tempo em que ela observava o circo de pulgas, era também ela, a pulga no circo de alguém. Para melhor compreensão da relação entre dramaturgia e visualidade recorro aos Fundamentos Sintáticos do Alfabetismo Visual:

Na criação de mensagens visuais, o significado não se encontra apenas nos efeitos cumulativos da disposição dos elementos básicos, mas também no mecanismo perceptivo universalmente compartilhado pelo organismo humano. Colocando em termos mais simples: criamos um design a partir de inúmeras cores e formas, texturas, tons e proporções relativas; relacionamos interativamente estes elementos; temos em vista um significado. O resultado é a composição, a intenção do artista, do fotógrafo ou do designer. É seu input. Ver é outro passo distinto da comunicação visual. É o processo de absorver a informação no interior do sistema nervoso através dos olhos, do sentido da visão. Esse processo e essa capacidade são compartilhados por todas as pessoas, em maior ou menor grau, tendo sua importância medida em termos do significado compartilhado. Os dois passos distintos, ver e criar e/ ou fazer são interdependentes, tanto para o significado em sentido geral quanto para a mensagem, no caso de se tentar responder a uma comunicação específica. (DONDIS, 1991, p. 31)


Para a criação da ilusão do universo das pulgas também fiz uso do recurso da dimensão e escala (perspectiva), filmando os atores de costas, a uma certa distância e aproximando à lente da câmera, um copo, dando a ideia de que as pulgas estavam dentro do mesmo (muito maior que os atores por estar próximo a câmera), que era retirado aos poucos. O elenco, porém, em nenhum momento tomou conhecimento de que enquanto estavam de costas, este processo era realizado. Ao virarem-se de frente e executarem os movimentos orientados, o copo já havia sido ocultado, impedindo que desconfiassem de que eram as pulgas de um processo, do qual nada sabiam.
Sua disposição no espaço, bem como suas ações e movimentos também remeteram ao círculo e à linhas diagonais triangulares. Como a cor escolhida foi o preto, as cenas foram gravadas tanto na sala cinquenta e um (sala das aulas de Teatro, que possui paredes, teto, cortina e linóleo preto), quanto em um corredor da Fundarte (fundação Municipal das Artes de Montenegro, prédio sede da Uergs). Este possui, uma parede cinza chumbo, acarpetada, facilmente modificada com os efeitos de saturação da cor, e o Black Restore, que confere um determinado formigamento ou textura às imagens (em escalas de cinza), sempre associado ao “mundo das pulgas”.
As imagens das pulgas foram feitos em dois momentos distintos, o primeiro com a pulga (que embaralhava os copos, que continham outras pulgas), a atriz Windy Branco (3º semestre- Teatro), realizado em pelo menos trinta minutos. Depois com os atores Gustavo Diestman, Daniel Barcellos, Raquel Zepka, Janaína Lima, Thaís Backes e João de Carli, (1º semestre- Teatro), aproximadamente em quinze minutos antes da aula da professora Jezebel De Carli. Os atores foram orientados a utilizar roupas de trabalho (camisetas e calças pretas) e a única informação, para justificar os movimentos que deles seriam pedidos, era o de que eu estava trabalhando a partir de formas geométricas.
O objetivo da neutralidade dos figurinos, era atribuir-lhes a significação comum de pulgas. O traje da encantadora dos insetos também era preto, embora estilizado. Um terno com decote em corte triangular, a destacava e a colocava numa condição diferente das demais, só no fim, ao se descobrir observada é que a associação do seu “eu” pulga também se torna mais possível. É interessante ressaltar que as imagens do universo da observadora eram mais orgânicas, com imagens apenas saturadas, enquanto as imagens dos atores- pulgas sempre recebiam o tratamento Black Restore. Estes efeitos, porém, começam a se fundir ao longo do curta, como código visual, de que ela também estava sendo observada. A imagem final, (na qual o cilindro branco de papel ofício vazado, é utilizado para espiá-la), recebe o efeito TV, de tonalidade azulada e textura visual mais aveludada ou “chuviscada”.
As duas filmagens, bem como os vídeos de filmagem da encantadora de pulgas e imagens do olho, foram realizados em momentos diferentes, sem que nenhuma das pulgas tomasse conhecimento da existência dos processos de gravações paralelas aos seus. O áudio também foi gravado separadamente, e sincronizado ou não de acordo com o objetivo da cena. Jonathas Pozo, responsável pela edição e montagem dos vídeos, uma pulga, “digamos assim”, consciente de sua condição, utilizou o programa Sony Vegas. Todo processo de gravação, roteirização, edição e montagem do vídeo foi dirigido por mim.
Mas, um dos aspectos interessantes é refletir sobre a autoria do mesmo. Autoria questionada de alguma forma, no dia do nascimento desta ideia, no qual Béatrice Picon- Vallin refletia sobre qual é o papel do encenador na cena contemporânea (qual é sua autoria em um processo no qual todos co-criam)? Embora, eu tenha o conceito e imagens pré- definidas, inclusive, algumas, desenhadas para orientar a cinegrafista Stephanny Dilenburg. É indiscutível, que no momento em que outro olho está por trás ou diante da lente, responsável pela edição, captação de imagens, atuação (por mais pré- expressiva que seja, como no caso das pulgas), esta autoria se divide.
São diferentes olhares (pulgas- atores, pulgas-cinegrafistas, pulga- editor), a serviço de um único olho (pulga- observadora- diretora), que passa a estar à mercê de diferentes olhares novamente (pulgas-espectadores). Voltamos então à imagem do círculo, ou aos triângulos dentro deste círculo e da forma como se relacionam num (des) equilíbrio próprio e silencioso.
Em uma de nossas reflexões, anteriores a realização da presente atividade, fiquei responsável por trazer uma imagem que estivesse em equilíbrio visual. Trouxe então, uma das imagens iniciais do filme “A Montanha Sagrada” de Alejándro Jodorowsky, (que infelizmente ainda não tive acesso, para assistir na íntegra). Nela também havia a configuração de um triângulo e um observador silencioso no centro. Acredito que mesmo inconscientemente, esta imagem tenha influenciado nas minhas escolhas para a criação do curta. Pesquisando para a atual escrita, achei uma descrição do filme que (salvo suas particularidades) me pareceu surpreendentemente próxima, a transcrevo abaixo:

Em A Montanha Sagrada um Cristo latino- americano contemporâneo caminha pelo centro histórico da Cidade do México com seu companheiro anão. Os dois andarilhos por um momento interrompem a caminhada para assistir ao “Grande Circo da Conquista do México”, interpretado por sapos e camaleões. (SESC, 2009, s/p.)

Embora, na breve passagem do circo de Jodorowsky, os camaleões astecas sejam massacrados pelos sapos espanhóis e haja aí toda uma reflexão política e religiosa, senti-me muito feliz com esta, até certo ponto, coincidência “circense”. O que me levou a questionar mais profundamente as possibilidades de leitura do meu circo, em que todos, (por mais que acreditem estar no controle), também são pulgas de um processo. Seríamos na vida, pulgas do circo de alguém? Existe alguma pulga no controle? Quem a observa? Quem é a pulga autora deste texto? A pulga que o escreveu, as pulgas citadas, as pulgas participantes... ou a pulga que o reescreve a partir de sua leitura?



Referências:

DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SESC. Mostra JODOROWSKY. In: Sonho, Magia e Desrazão, um diálogo entre Glauber e Jodorowsky (Estevão Garcia). São Paulo: Ed. SESC, 2009.